Versão eletrônica do diálogo platônico “Fedão”
Tradução: Carlos Alberto Nunes
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FEDÃO
I – Estiveste tu mesmo, Fedão, junto de Sócrates no dia em que ele tomou veneno na
prisão, ou ouviste de alguém?
Fedão – Não, eu mesmo, Equécrates.
Equécrates – Então, que disse o homem antes de morrer? E como foi a sua morte?
Gostaria de saber tudo o que se passou. Recentemente, nenhum cidadão de Fliunte tem ido
a Atenas, e há muito não nos vêm de lá forasteiros capazes de dar-nos informações seguras,
salvo dizerem que morreu depois de tomar o veneno. Quanto ao mais, nada informam de
particular.
Fedão – E também não ouviste contar como foi o julgamento?
Equécrates – Ouvimos, sim; alguém nos falou nisso. Surpreendeu- nos, justamente,
ter sido bem antes o julgamento e ele só vir a morrer muito depois. Que aconteceu, Fedão?
Fedão – Foi tudo obra do acaso, Equécrates, o que se passou com ele. Precisamente
na véspera do julgamento coroaram a popa do navio que os Atenienses enviam a Delo.
Equécrates – Que é isso?
Fedão – Segundo os Atenienses, é o navio em que outrora Teseu levou para Creta as
duas septenas de jovens, moços e moças, que ele salvou, salvando-se também. Nessa
ocasião, segundo contam, prometeram a Apolo enviar anualmente uma deputação a Delo,
no caso de se salvarem, e até hoje todos os anos vão em romaria à divindade. Desde o início
dos preparativos da viagem, determina a lei que se proceda à purificação do burgo, não
sendo permitido executar ninguém por crime público antes de chegar a Delo o navio e
retornar de lá. Por vezes esse prazo fica muito dilatado, quando os ventos são adversos. O
início da peregrinação é contado a partir do momento em que o sacerdote de Apolo coroa a
popa do navio, o que se deu, conforme disse, na véspera do julgamento. Esse o motivo de
ter estado Sócrates tanto tempo na prisão, desde o julgamento até à morte.
II – Equécrates – E as condições em que morreu, Fedão? Quais foram suas palavras?
Como se houve em tudo? Quais dos seus familiares se encontravam ao seu lado? Ou as
autoridades não permitiram que entrassem, vindo ele a morrer privado de assistência dos
amigos?
Fedão – De forma alguma; vários estiveram presentes; em grande número, mesmo.
Equécrates – Então, procura contar-nos com a maior exatidão possível como tudo se
passou, no caso de dispores de folga.
Fedão – Disponho, sim, e vou tentar expor-vos o que se deu. Para mim, nada é tão
agradável como recordar-me de Sócrates, ou seja quando falo nele, ou quando ouço alguém
falar a seu respeito.
Equécrates – Pois podes ter a certeza, Fedão, de que teus ouvintes estão nessas
mesmas condições. Esforça-te, portanto, para contar o caso com todas as minúcias.
Fedão – Era por demais estranho o que eu sentia junto dele. Não podia lastimá-lo,
como o faria perto de um ente querido no transe derradeiro. O homem me parecia
felicíssimo, Equécrates, tanto nos gestos como nas palavras, reflexo exato da intrepidez e
da nobreza com que se despedia da vida. Minha impressão naquele instante foi que sua
passagem para o Hades não se dava sem disposição divina, e que, uma vez lá chegando,
sentir-se-ia tão venturoso com os que mais o foram. Por isso mesmo, não me dominou
nenhum sentimento de piedade, o que seria natural na presença de um moribundo. Também
não me sentia alegre, como costumava ficar em nossa práticas sobre filosofia. Sim, porque
toda nossa conversa girou em torno de temas filosóficos. Era um estado difícil de definir,
misto insólito de alegria e tristeza, por lembrar-me de que ele iria morrer dentro de pouco.
As mais pessoas presentes se encontravam em condições quase idênticas, umas rindo,
outras chorando, principalmente Apolodoro. Conheces o homem e sabes como ele é.
Equécrates – Sem dúvida.
Fedão – Pois desse jeito se comportou o tempo todo. Eu também, fiquei muito
abalado, a mesma coisa passando-se com os outros.
Equécrates – E quem se achava lá, Fedão?
Fedão – Além do mencionado Apolodoro, seus conterrâneos Critobulo e o pai,
Hermógenes, Epígenes, Ésquines e Antístenes. Ctesipo de Peânia também esteve presente,
Menéxeno e mais alguns da mesma região. Se não me engano, Platão se achava doente.
Equécrates – E havia também estrangeiros?
Fedão – Sim, os Tebanos Símias, Cebete e Fedondes; e de Mégara, Euclides e
Térpsio.
Equécrates – Nesse caso, Aristipo e Cleômbroto também estiveram com ele?
Fedão – Não; falaram que se encontravam em Egina.
Equécrates – Havia mais alguém?
Fedão – Creio que eram só esses.
Equécrates – E depois? Quais foram os discursos a que te referiste?
III – Fedão – Vou esforçar-me para contar tudo do começo. Tal como na véspera,
todos os dias visitávamos Sócrates, e desde a manhãzinha íamos encontrar-nos no tribunal
em que se deu o julgamento. Fica perto da cadeia. Ali esperávamos conversando até que a
cadeia abrisse, pois não costumam abri-la muito cedo. Porém logo que isso se dava,
corríamos para junto de Sócrates e quase sempre passávamos com ele o dia todo. Nessa
manhã reunimo-nos mais cedo, porque na tarde anterior, ao nos retirarmos da prisão,
soubemos que o navio chegara de Delo. Por isso, combinamos encontrar-nos o mais cedo
possível no lugar habitual. Ao chegarmos, o porteiro que costumava receber-nos veio ao
nosso encontro para dizer que esperássemos fora e não entrássemos sem que ele nos
avisasse. Neste momento, nos disse, os Onze estão tirando os ferros de Sócrates e lhe
comunicam que hoje ele terá de morrer. Depois de algum tempo, voltou para dizer que
entrássemos. Ao penetrarmos no recinto, encontramos Sócrates, que acabava de ser aliviado
dos ferros, e Xantipa – conhece-la decerto – com o filho pequeno, sentada junto do marido.
Ao ver-nos, começou Xantipa a lastimar-se e clamar como de hábito nas mulheres,
dizendo: Pela última vez, Sócrates, teus amigos conversarão contigo, e tu com eles.
Virando-se para Critão, Sócrates lhe disse: Critão, leva-a para casa. A isso, alguns dos
homens de Critão a retiraram, não cessando ela de gritar e debater-se. Sócrates, de seu lado,
sentado no catre, dobrou a perna sobre a coxa e começou a friccioná-la duro com a mão, ao
mesmo tempo que dizia: Como é extraordinário, senhores, o que os homens denominam
prazer, e como se associa admiravelmente com o sofrimento, que passa, aliás, por ser o seu
contrário. Não gostam de ficar juntos no homem; mal alguém persegue e alcança um deles,
de regra é obrigado a apanhar o outro, como se ambos, com serem dois, estivessem ligados
pela cabeça. Quer parecer-me, continuou, que se Esopo houvesse feito essa observação, não
deixaria de compor uma fábula: Resolvendo Zeus pôr termo as suas dissensões contínuas, e
não o conseguindo, uniu-os pela extremidade. Por isso, sempre que alguém alcança um
deles, o outro lhe vem no rastro. Meu caso é parecido: após o incômodo da perna causada
pelos ferros, segue-se-lhe o prazer.
IV – Nesta altura, falou Cebete: Por Zeus, Sócrates, disse, foi bom que mo
lembrasses. Diversas pessoas já me têm falado a respeito dos poemas que escreveste,
aproveitando as fábulas de Esopo, e do hino em louvor de Apolo. Anteontem mesmo, o
poeta Eveno me interpelou sobre a razão de compores verso desde que te encontras aqui, o
que antes nunca fizeras. Se te importa deixar-me em condições de responder a Eveno
quando ele voltar a falar-me a esse respeito – e tenho certeza de que o fará – instrui-me
sobre o que deverei dizer-lhe.
Então dize-lhe a verdade, Cebete, replicou: que não me movia o desejo de fazer-lhe
concorrência nem aos seus poemas, quando compus os meus, o que, aliás, tentativa para
rastrear o significado de uns sonhos e cumprir, assim, minha obrigação, no sentido de saber
se era essa a modalidade de música que me recomendavam com insistência. É o seguinte:
Muitas e muitas vezes em minha vida pregressa, sob formas diferentes me apareceu um
sonho, porém dizendo sempre a mesma coisa: Sócrates, me falava, compõe música e a
executa. Até agora eu estava convencido de ser justamente o que eu fizera a vida toda o que
o sonho me insinuava e concitava a fazer, à maneira de como costumamos estimular os
corredores: desse mesmo modo, o sonho me exortava a prosseguir em minha prática
habitual, a compor música, por ser a Filosofia a música mais nobre e a ela eu dedicar-me.
Agora, porém, depois do julgamento e por haver o festival do deus adiado minha morte,
perguntei a mim mesmo se a música que com tanta insistência o sonho me mandava
compor não seria essa espécie popular, tendo concluído que o que importava não era
desobedecer ao sonho, porém fazer o que ele me ordenava. Seria mais seguro cumprir essa
obrigação antes de partir, e compor poemas em obediência ao sonho. Assim, comecei por
escrever um hino em louvor à divindade cuja festa então se celebrava. Depois da divindade,
considerando que quem quiser ser poeta de verdade terá de compor mitos e não palavras,
por saber-me incapaz de criar no domínio da mitologia, recorri às fabulas de Esopo que eu
sabia de cor e tinha mais à mão, havendo versificado as que me ocorreram primeiro.
V – Isso, Cebete, é o que deverás dizer a Eveno. Apresenta-lhe, também, saudações
de minha parte, acrescentando que, se ele for sábio, deverá seguir-me quanto antes. Parto,
ao que parece, hoje mesmo; assim os determinam os Atenienses.
Símias exclamou: Que conselho, Sócrates, mandas dar a Eveno! Tenho estado
bastantes vezes com o homem, e por tudo o que sei dele, não terá grande desejo de aceitarte
a indicação.
Como assim? Perguntou; Eveno não é filósofo?
Penso que é, retrucou Símias.
Nesse caso, terá de aceitá-la, tanto Eveno como quem quer que se aplique dignamente
a esse estudo. O que é preciso é não empregar violência contra si próprio. Dizem que isso
não é permitido.
Assim falando, sentou-se e apoiou no chão os pés, permanecendo nessa posição, daí
por diante, durante todo o tempo da conversa.
Nessa altura Cebete o interpelou: Por que disseste, Sócrates, que não é permitido a
ninguém empregar violência contra si próprio, se, ao mesmo tempo, afirmas que o filósofo
deseja ir após de quem morre?
Como, Cebete, nunca ouvistes nada a esse respeito, tu e Símias, quando convivestes
com Filolau?
Ouvi, Sócrates, porém muito pela rama.
Sobre isso eu também só posso falar de outiva; porém nada me impede de comunicarvos
o que sei. Talvez, mesmo, seja a quem se encontra no ponto de imigrar para o outro
mundo que compete investigar acerca dessa viagem e dizer como será preciso imaginá-la.
Que melhor coisa se poderá fazer para passar o tempo até sol baixar?
VI – Qual o motivo, então, Sócrates, de dizerem que a ninguém é permitido suicidarse?
De fato, sobre o que me perguntaste, ouvi Filolau afirmar, quando esteve entre nós, e
também outras pessoas, que não devemos fazer isso. Porém nunca ouvi de ninguém
maiores particularidades.
Então, o que importa é não desanimares, disse; é possível que ainda venhas a ouvilas.
Talvez te pareça estranho que entre todos os casos seja este o único simples e que não
comporte como os demais, decisões arbitrárias, segundo as circunstâncias, a saber: que é
melhor estar morto do que vivo. E havendo pessoas para quem a morte, de fato, é
preferível, não saberás dar a razão de ser vedado aos homens procurarem para si mesmos
semelhante benefício, mas precisarem esperar por benfeitor estranho.
Itto Zeus, disses Cebete em seu dialeto, esboçando um sorriso: Deus o saberá.
Aparentemente, continuou Sócrates, isso carece de lógica; mas o fato é que tem a sua
razão de ser. Aquilo dos mistérios, de que nós, homens, nos encontramos numa espécie de
cárcere que nos é vedado abrir para escapar, afigura-me de peso e anda fácil de entender.
Uma coisa, pelo menos, Cebete, me parece bem enunciada: que os deuses são nossos
guardiães, e nós, homens, propriedade deles. Aceitas esse ponto?
Perfeitamente, respondeu Cebete.
Tu também, continuou, na hipótese de algum dos teus escravos pôr termo à vida, sem
que lhes houvesse dado a entender que estavas de acordo em que se matasse, não te
aborrecerias com ele, e se fosse possível, não o punirias?
Sem dúvida, respondeu.
Por conseguinte, não acho absurdo ninguém poder matar-se sem que a divindade o
coloque nessa contingência, como é o nosso caso agora.
VII – Essa parte, observou Cebete, também me parece razoável. Porém o que
afirmaste antes, sobre a disposição do filósofo para morrer, é um verdadeiro contra-senso,
Sócrates, se estiver certo o que dissemos há pouco, que Deus cuida de nós e que somos
propriedades dele. Que os indivíduos mais sábios se insurjam contra semelhante tutela e
procurem evitá-la, quando a exercem, precisamente, os deuses, os melhores dirigentes, é o
que não chego a compreender. Pois ninguém ousará dizer que saberá cuidar melhor de si
mesmo, uma vez em liberdade. Um indivíduo insensato poderia raciocinar dessa maneira,
por achar bom fugir do amo, sem considerar que não se deve fugir do bem, mas ficar junto
dele o maior tempo possível. Foge por carecer de senso. O indivíduo inteligente, pelo
contrário, só deseja continuar junto de quem lhe seja superior. Por isso, Sócrates, o certo é,
precisamente, o oposto do que foi dito há pouco: aos sábios é que fica bem insurgir-se
contra a idéia da morte, e aos insensatos, exultar ante essa perspectiva.
Ao ouvi-lo assim falar, quis parecer-me que Sócrates se alegrava com a agudeza de
Cebete; depois, voltando-se para nosso lado, falou: Cebete anda sempre à cata de
argumentos, sem aceitar de pronto a opinião dos outros.
Ao que Símias observou: Porém quer parecer-me, Sócrates, que há bastante senso nas
palavras de Cebete. Não se compreende, de fato, que indivíduos verdadeiramente sábios
fujam de amos melhores do que eles e se alegrem com essa liberdade. A meu ver, o
argumento de Cebete vai dirigido contra ti, por aceitares à ligeira a idéia de deixar-nos, e
também aos amos cuja superioridade és o primeiro a proclamar...

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